segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

ORIGENS TEOLÓGICAS DO PENSAMENTO BATISTA

Aula apresentada por Elisa Rodrigues, graduada em Educação Religiosa, no curso de Teologia Contemporânea, ministrado pelo professor Jorge Pinheiro na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, no segundo semestre de 1999.

Definição de ortodoxia: Qualidade de ortodoxo; Doutrina Religiosa considerada como verdadeira; Conformidade de uma opinião com uma doutrina verdadeira. MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998. p. 1510). Ortodoxia cristã

O cristianismo ortodoxo essencialmente descritivo, trata das bases comuns da fé cristã reveladas na Bíblia, a despeito das diferenças teológicas criadas a partir de reflexões humanas. Nesse sentido a ortodoxia na fé cristã, conta com elementos históricos necessários para a conservação de uma fé comum, que se caracteriza nos eventos máximos do cristianismo:
Encarnação
Morte
Ressurreição
Ascensão de Cristo
E, se Cristo não ressuscitou logo é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados. I Cor 15.17.
A ressurreição de Jesus constituía-se em convicção tal que não se podia admitir que alguém se recusasse a aceitá-la e continuasse a considerar-se como pessoa cristã. A ressurreição de Jesus constituía-se a rocha da fé confessada por aqueles crentes. (HORDERN, William. Teologia Protestante ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Junta Religiosa e Publicações da Convenção Batista Brasileira, 1982. p. 20-21)
A ortodoxia clássica relacionou-se com uma grande teologia. Poderíamos chamá-la de escolástica prostestante, com todos os refinamentos e métodos que a palavra escolástica inclui. Assim, quando eu falo de ortodoxia, refiro-me à maneira como a Reforma estabeleceu-se, enquanto forma eclesiástica de vida e pensamento(...). É a sistematização e a consolidação das idéias da Reforma, desenvolvidas em contraste com a Contra-Reforma. A teologia ortodoxa foi, e ainda é, a base sólida de onde emanaram todos os desenvolvimentos posteriores(...). A teologia liberal até hoje tem sido dependente da ortodoxia contra a qual constantemente se rebela. (TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 1988. p. 251.)
Cada grupo/divisão cristã apresenta sua própria doutrina, que exprime uma regulamentação do que seja um modus operandi da vida cristã segundo a cosmovisão desse grupo em relação a revelação de Deus para o homem.
A ortodoxia conforme o que se disse anteriormente, é o âmago da fé cristã que contém as bases do pensamento teológico e que, no segundo e terceiro séculos, expressou-se de modo mais sistemático nos Credos organizados em concílios, como por exemplo o Credo Apostólico uma refutação ao pensamento gnóstico que deturpava os ensinamentos a respeito da Revelação de Deus na Criação (matéria) e em Cristo.
Outros credos foram desenvolvidos em face da necessidade de estruturar e fundamentar a fé cristã, por isso, os conhecidos credos de Nicéia e Calcedônia.
O pensador, no Ocidente, mais respeitado por sua ortodoxia bem elaborada, também com caráter de refutação, foi Agostinho que opôs-se a Pelágio. Basicamente Pelágio defendia a tese que o pecado de Adão prejudicara ninguém mais do que ele mesmo e, todo homem é livre para escolher entre bem e mal a qualquer tempo durante sua vida. Contrário a esse conceito, Agostinho afirmou que o homem tem total propensão ao pecado e que só é livre mediante o ato de graça de Deus que conduz a libertação.
Essa teoria agostiniana levou à doutrina da predestinação que ganhou ainda mais força com o advento da Reforma.
Ao surgir da Reforma, a maioria de seus líderes deixou de por em dúvida qualquer das doutrinas consideradas ortodoxas até aqui delineadas. Lutero, por exemplo, retomou a doutrina da salvação pela graça, ressaltando-a de modo como não o fora desde os dias de Paulo. Sua atitude o colocou em conflito aberto com a doutrina católica concernente à natureza da Igreja e da autoridade de sua hierarquia. Recusando-se a submeter-se às pretensões de supremacia do Papa, Lutero entendia residir a autoridade última na Bíblia, interpretada pelo Espírito Santo operando dentro do coração do crente. Em lugar da hierarquia católica, ele passou a ensinar a doutrina do sacerdócio de todos os que crêem. Isto é, nenhum crente precisaria de sacerdote para servi-lhe de intermediário diante de Deus, com exceção de Cristo, que é o mediador perfeito(...) Calvino concordou com Lutero e nos legou a primeira Teologia Sistemática. (HORDERN, William. Teologia Protestante ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Junta Religiosa e Publicações da Convenção Batista Brasileira, 1982. p. 38).
A Reforma Protestante e o Renascimento:
um contexto de mudanças
Por esse tempo, em que a Reforma fazia estremecer as bases do pensamento teológico e a igreja, eclodia, já a duzentos anos, o ilustre período histórico denominado Renascimento que, basicamente, evocava elementos da Roma e Grécia antiga, contrariando os padrões de conduta e valores da Idade Média. Nesse sentido, a igreja e a ordem vigente que lhe era outorgada, passava por um duplo risco: Reforma Protestante e Renascimento.
Em ambos movimentos a autoridade da igreja católica era contestada, sofrendo grandes críticas quanto a supremacia e a mediação, facilitada pela questão do latim que só compreendiam os clérigos e, portanto, monopolizavam o conhecimento de Deus. Com a expansão marítima e o advento dos descobrimentos e o desenvolvimento da imprensa, a informação tornou-se acessível a uma considerável gama de pessoas e, tendo sido traduzida a Bíblia em outras línguas e publicada, o clero já não se fazia imperativo para que a vontade de Deus fosse sabida e comunicada ao homem. Todos podiam ter acesso ao conhecimento de Deus por meio da leitura pessoal das Sagradas Escrituras.
Enquanto isso, o Renascimento originou o racionalismo, cosmovisão que compreende os problemas e situações humanas à luz da razão, dando ao homem status de auto-suficiência. O homem desse período deixa de pensar e ser teocêntrico para pensar e ser antropocêntrico. Por esse tempo, séculos XVI e XVII, a fé cristã ortodoxa é confrontada com os pensadores racionalistas que depositavam na razão, a confiança de que era a autoridade instiutída mais provável no processo de conhecimento da verdade.
Os racionalistas, também chamados iluministas por serem contemporâneos do século das luzes quando idéias brilhantes faiscavam a todo tempo nas mentes aguçadas dos pensadores não eram irreligiosos, ao contrário do que afirmam, entretanto, não sendo um movimento de oposição à religião, o Renascimento se insurgia, de fato, contra a ortodoxia. Desejava-se uma religião, como Kant teve oportunidade de ressaltar, dentro dos limites da razão. (HORDERN, p. 45).
Mas, como se não bastassem os constantes ataques à ortodoxia por parte dos iluministas, figura no cenário uma personagem não menos importante: a ciência.
A ciência foi representada inicialmente por dois grandes homens Copérnico e Darwin que, desfilaram suas teorias científicas impactando o meio religioso. Respectivamente, a Terra e o homem deixam de ocupar o centro do universo, tornando-se nada mais que um grão de poeira cósmica e, o homem, detentor de autoridade provinda de superioridade, foi relegado a posição de animal em processo evolutivo, nada mais que uma ameba.
A ortodoxia, portanto, defensora do homem enquanto ser criado a imagem de Deus para glorificá-lo e servi-lo, passa por uma difícil contestação, reforçada ainda, posteriormente, por Freud no domínio da psicanálise e Nietzche em filosofia.
Nesse contexto de efervescência intelectual, onde verdades absolutas eram contestadas e crenças ridicularizadas pela razão exaltada, é que o pensamento teológico protestante adquire força e começa a desenvolver-se com autoridade, caráter de resposta as questões levantadas e atitude de contestação.
Considera-se que existem três grupos religiosos originários dos reformadores do século XVI, são eles:
Os matrizes: luteranos, presbiterianos (calvinistas e zwinglianos), anglicanos e anabatistas.
Os herdeiros: congregacionais, batistas e metodistas.
Os vice-herdeiros: adventistas, pentecostais.
Dessa forma, podemos considerar fio condutor ou, conjunto de princípios que lhes são gerais o Solus Christus, Sola Fide e Sola Scriptura de Martinho Lutero (1483-1546).
As influências sobre o pensamento contemporâneo
Segundo Israel Belo de Azevedo, Denominação(...), é uma forma específica e histórica que uma igreja toma. No interior do cristianismo, as denominações podem ser vistas como conjuntos de tradições seguidas por igrejas. Os batistas integram uma denominação. (AZEVEDO, Israel Belo de. A celebração do indivíduo: A formação do pensamento batista brasileiro. Piracicaba: Editora Unimep; São Paulo: Exodus, 1996. p. 18).
As bases do pensamento teológico contemporâneo devem ser compreendidas à luz do liberalismo do século XVII que conta com elementos formativos diversos e por isso, considera-se um sistema de pensamento que prioriza a livre expressão do ser como exercício prático de uma existência validada nos níveis individual e social, a partir dos domínios sócio-político-cultural que favorecem por meio da liberdade, o estado de conscientização que gera o sentimento de realização. Basicamente, a plataforma teórica desse pensamento encontra-se nas teses do naturalismo, do racionalismo, do individualismo, do progressismo e do relativismo... (AZEVEDO, Israel Belo de. ob. cit. p. 19).
Esse pensamento bifurcou-se em várias vias: o liberalismo teológico, liberalismo político e econômico, diretamente influenciados pelas tendências daquele momento histórico tudo submetido a crítica da razão e experiência.
Essa nova cosmovisão, como dito anteriormente, legava ao homem não o centro do universo, mas, à razão, a supremacia capaz de compreender e desvendar todos os mistérios dos cosmos.
Portanto, os batistas organizaram-se como denominação plantados nos princípios liberais do século XVII. O resultado dessa reflexão, basicamente, caracteriza-se na estruturação de igrejas livres em sociedades livres (AZEVEDO, Israel Belo de. ob. cit. p. 20), que constitui também uma proposta política.


Os batistas ingleses e a busca pela liberdade religiosa

Quadro histórico:
1603
Uma nova era caracterizada pela troca de dinastias: Tudors por Stuarts.
Mudanças no pensamento contemporâneo: Renascimento (mentalidade desperta)
Ampla difusão das Escrituras Sagradas
Crescimento comercial
Ação puritana contra a igreja oficial. Atitude de repúdio as influências do clero na autoridade monárquica em nome de Deus ; oposição ao totalitarismo oligárquico da igreja.
Igreja Anglicana dividida.
1604
O rei James I persegue as igrejas protestantes
O rei exige a uniformidade religiosa para manter a ordem social
Afirma-se como autoridade máxima na igreja e estado.
1625
Sucessão imperial: Charles I nova esperança para puritanos e dissidentes
1633
William Laud assume como Arcebispo da Cantuária tornando-se a maior autoridade eclesiástica inglesa; é também nomeado um dos primeiros ministros e, apoia a supremacia do rei sobre a igreja e estado
São acirradas as perseguições aos puritanos


1640

Crescem as tensões entre o Parlamento e o rei


1642

A discórdia entre o rei e o Parlamento resultam em revolução armada Exército Modelo vrs. Partido Puritano (Presbiterianismo) vitória do último
As igrejas separatistas decepcionam-se; princípios de liberdade religiosa não são adotados


1648

Formação do Protetorado de Cromwell; propaganda das igrejas batistas dão início às mudanças a favor da liberdade religiosa.


A formação dos princípios da igreja batista

O princípio da liberdade religiosa foi parte integrante da vida e fé dos primeiros batistas.
(OLIVEIRA, Zaqueu Moreira de. Liberdade e Exclusivismo: Ensaios sobre os Batistas Ingleses. Rio de Janeiro: Horizonal; Recife: STBNB Edições, 1997. p. 78).
Uma das hipóteses em relação a citação anterior, é que a luta pela liberdade como um bem precioso para o ser humano, é conseqüência das cruéis perseguições e injustiças cometidas pelo rei para com as igrejas dissidentes; isso porque, conforme já visualizado no quadro histórico, o poder do estado centralizado na figura do rei e indiscutivelmente apoiado pela igreja oficial (católica), intentavam a uniformidade da religião objetivando a supremacia da autoridade.
As chamadas igrejas dissidentes opunham-se a esse intento, buscando exatamente o contrário: a liberdade religiosa. Por motivos político-econômicos óbvios detenção e monopolização dos meios de produção e organismos sociais tanto o rei quanto a igreja não desejam a alteração da ordem vigente.
Por essa época (1610-1612), John Smyth, primeiro pastor batista na Inglaterra, levantou a bandeira da liberdade de consciência absoluta (OLIVEIRA, Zaqueu Moreira de. ob. cit. p. 83), eis o início da trajetória batista de interesse e ação política engajada na busca pela liberdade religiosa.

Origens do pensamento batista

Com relação as origens do pensamento batista, não existem evidências históricas devidamente documentadas que especifiquem de onde nasceu a reflexão teológica batista. Na verdade, existem hipóteses divergentes a respeito de suas origens; conquanto, sabe-se que a Reforma se dera a partir da ação efetiva de Lutero, Calvino e Zwinglio, logo outros nomes e movimentos foram acrescidos o anabatismo, o puritanismo e o metodismo (AZEVEDO, Israel Belo de. ob. cit. p. 58) ao protestantismo. Tendo como base os três princípios Sola Fide, Solus Christus e Sola Scriptura, as teologias desenvolveram-se de acordo com as interpretações dos diferentes grupos, todavia, o eixo central (...) era praticamente o mesmo. Todos aceitaram o princípio básico da justificação pela fé, nada cabendo ao mérito humano, já que a fé é um Dom de Deus e não uma conquista humana. Mesmo os anabatistas, que tinham preocupações teológicas menos sistemáticas, concordavam que a salvação era pela fé, embora reinterpretassem o conceito para incluir nele a noção (um pouco mais mística) de uma nova vida habitada por Cristo. (AZEVEDO, Israel Belo de. ob. cit. p. 60).


Algumas ênfases teológicas:

Lutero: Teologia Cristológica; Predestinação dos eleitos; igreja como comunidade dos santos em Cristo; estado como ordenança.
Calvino: Bíblia suprema autoridade; Doutrina da predestinação dupla e incondicional; igreja como comunidade dos santos em Cristo; estado como ordenança, sendo dever do estado proteger a religião.
Zwinglio: Interpretação normativa da Bíblia; Predestinação simbólica; Pecado original como doença moral perdoável a qualquer tempo, salvação pela razão; igreja como comunidade dos santos em Cristo; aliança entre igreja e estado.
Anabatistas: A Palavra de Deus como fonte experimentada pela iluminação do Espírito Santo; Regeneração necessária para a vida nova; igreja associação voluntária de santos; completa separação entre a igreja e o estado. (Baseado em AZEVEDO, Israel Belo de. ob. cit. p.62).

Anexo 1

Declaração doutrinária (Convenção Batista Brasileira) sobre a Eleição:
Segundo Sua graça imerecida, Deus opera a salvação em/através de Cristo, de pessoas eleitas (desde a eternidade), chamadas, predestinadas, justificadas e glorificadas à luz de Sua presciência e de acordo com o livre arbítrio de cada um e de todos.

I Pe 1.2; Rm 9.22-24; I Ts 1.4; Rm 8.28-30; Ef. 1.3-14.


Todos são eleitos

Deus opera a salvação em/através de Cristo pela sua graça (favor imerecido)
Deus é pré-ciente
De acordo com o livre-arbítrio, desde a eternidade, Deus elege, chama, predestina, justifica e glorifica Anexo 2


GUILHERME DELL

Conhecido por suas fortes convicções teológicas a respeito da livre expressão do ser e defensor ferrenho dos princípios batistas, apesar de não ter ligação com nenhuma congregação, em 1646, destacou-se pela sua luta a favor da liberdade religiosa na Inglaterra.
Escreveu o livro entitulado Uniformidade Examinada (...) que postulava a tese de que a unidade deve existir sem uniformidade, uma vez a última era má e intolerável excluindo toda a liberdade concedida por Deus. Essa era uma nova argumentação favorável a liberdade religiosa.
Outra questão estava no fato de que a uniformidade contraria a própria mensagem de Cristo e forçava a igreja, que é o corpo de Cristo, a portar-se de maneira externa aos seus princípios, por meio de um poder estabelecido e, sem o aval de Deus, a religião configuraria-se num movimento anticristão, considerado por Dell, pior que o paganismo.
Dell usou cada oportunidade que teve para defender liberdade de consciência. Ele considerou o uso de coação uma invenção humana, algo deletério que não tinha lugar no reino de Cristo. (OLIVEIRA, Zaqueu Moreira de. Liberdade e Exclusivismo: Ensaios sobre os Batistas Ingleses. Rio de Janeiro: Horizonal; Recife: STBNB Edições, 1997. p. 104-106).
[Aula apresentada por Elisa Rodrigues, graduada em Educação Religiosa, no curso de Teologia Contemporânea, ministrado pelo professor Jorge Pinheiro na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, no segundo semestre de 1999].

Fonte: http://clickteologia.blogspot.com/2010/01/origens-teologicas-do-pensamento.html