quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Sociedade do Excesso sem exeção

Filhos assassinam pais, professores alertam alunos para a nota zero da prova e recebe um ‘e daí’ como resposta, pulamos normalmente por sobre mendigos nas ruas, receamos nos casar, ficamos ao invés de namorar, assistimos o horror na mídia e não nos assustamos, a expressão da sexualidade é múltipla, convivemos pacificamente com a violência, ser ator não é mais coisa de gay, médico, engenheiro e advogado não são mais as únicas profissões, queimam-se prostitutas, oficiais da sociedade abusam do poder, adoecemos psicologicamente sem saber o porquê e etc.


Estamos numa sociedade ímpar. Sociedade do excesso onde a diversidade não permite exceção. O diverso trouxe uma nova normalidade. O normal não é mais versão do único, mas a expressão do multiverso. Logo, nada é exceção, nem mesmo o excesso.


Sociedade do excesso porque o desejo não tem lei. A autoridade não mais orienta, regula ou limita. A autoridade se cala, pois não tem mais legitimidade para apontar para todos o caminho verdadeiro, pois o saber científico diz não existir. O saber científico é uma autoridade que desregula a autoridade do senso comum e da moral na sociedade. O saber científico se põe perante a autoridade dos pais e educadores apontando-lhes a autoridade que aponta a direção como um sinônimo de autoritarismo e abuso de poder. Daí se explica, por exemplo, os filhos sem limites, violentos contra pais e educadores e filhos que assassinam pais.


Sociedade sem exceção porque não há normalidade única, não há a versão correta a se seguir e nem quem esteja fora da versão, então não há quem esteja fora do normal. Assistimos a morte da moralidade. Não há o ideal, o correto, a verdade única. Dessa forma, ninguém está em exceção, já que não existe uma única versão, mas sim o multiverso, a diversidade de opções possíveis e de maneiras de ser e existir. Daí se explica, por exemplo, a expressão da sexualidade nessa sociedade, onde não há mais homens e mulheres e heterossexuais, há o multiverso de opções sexuais sem quem oriente qual seguir. Não há na sociedade a orientação para uma verdade única como a heterossexualidade.


Sociedade onde tudo é corriqueiro, diverso e em excesso. Onde não ha anormal e nem normalidade, pois tudo é diverso. Então não há exceção ao normal, não há estado de exceção, não há o estranho que assusta, já que tudo é diverso e excessivo. O excesso entre o diverso faz tudo parecer normal-sem-exceção. Nesse contexto se percebe a dessensibilização moral e ética em parcelas da sociedade.


Não há quem hoje se espante ante o excesso de violência, de erotismo e de horror expostos na mídia através de reality shows que se propõem a retirar as fronteiras entre a dimensão pública e privada da existência humana. A retirada dessa fronteira delimitadora entre público e privado proporciona a sensação do excesso na atualidade. Antes o que a moral barrava, hoje o desejo anseia sem limites. O desejo deleita-se com pessoas aprisionadas em condições de vida excessivamente aterrorizantes, erotizadas e violentas.


É o excesso do e no desejo do outro. A hipermodernidade de que fala Lipovetsky. Perante o multiverso o desejo sem lei fica desnorteado e por vezes colapsa. Proibir é proibido. Assim estimula-se a produção do diverso e do excesso. Quem se diverte é o gozo que flui desregradamente livre e temporariamente ou colapsa diante do impasse das escolhas. Isso explica o ‘ficar’ e a dificuldade de arrumar casamentos na sociedade onde ninguém quer compromisso conjugal duradouro.


Assim, o mendigo, o menino rua, a prostituição, as drogas, a violência, a corrupção, a degradação do outro não mobilizam como antes mobilizam a movimentação social. Entretanto, há parcelas da população assustadas com essa normalidade do anormal e assim fundam instituições de promoção do anormal dentro dessa normalidade patológica. Eles vêm dizer, por exemplo, que meninos de rua não é tão normal assim, vêm dizer que pessoas sem educação básica é anormal e que fogem do normal da cidadania.


Portanto, as ONGs, de certa forma, representam o resgate ideológico da normalidade através do apontamento do anormal e do excluído dos direitos de cidadania. Sua função é a de ressensibilizar os dessensibilizados ao advogar que algumas condições de vida são anormais perante uma rede de dispositivos legais que garantem a normalidade perdida da cidadania.


Na modernidade havia o instituto psicológico da Identificação. Em família havia a existência do discurso do Outro que nos apontava o caminho ideal e com essa forma de caminhar nos identificávamos barrando o excesso de desejo pueril com o qual nos sobejávamos na infância. A relação entre família e os papéis de seus membros se modificaram. Novas funções são observadas. Não há mais quem diga sobre o certo ou errado e barre o excesso de desejo em família. Só há quem na sociedade profetize o excesso de desejo como ativadores de males vindouros.


Percebemos na atualidade a queda do outro que regula o excesso de desejo em família, pois barrar agora é crime inadequado. A lei familiar não mais proíbe o desejo, pois ela não existe. A proibição pela lei se fora e presenciamos o excesso e o desrespeito pela existência do próximo. A alteridade só existe enquanto servir de objeto do desejo. Daí a efemeridade dos encontros. Portanto, desejo excessivo sem lei nos fala de egoísmo a partir de um ponto de vista. O que importa é exceder o desejo, mesmo que o outro, que não aprendemos a vê-lo em seus direitos básicos, exista.


Assim caminhamos, em excesso e em nova normalidade. Rumo a uma nova sociedade. A sociedade do excesso. Sociedade sem noção de privado. A sociedade do diverso. A sociedade sem lei para o desejo. Uma sociedade sem exceção e egoísta, portanto.


A partir dessa reflexão, qual seria o papel do cristão nessa sociedade? Qual tem sido a influência dessa sociedade (que está apontada em II Tm 4:3) sobre a Eclésia? Muitas por certo. É só observar os tentáculos tentadores do neopentecostalismo que se harmoniza perfeitamente com essa proposta de sociedade do excesso sem exceção.


Uma sociedade que apregoa o anarquismo do desejo humano é uma sociedade que pode ser mais interessante para dar vazão à voz do pecado que habita o ser humano.


Uma sociedade onde ser cristão é continuar dando vazão aos desejos humanos em excesso e sem exceção até mesmo dentro da igreja que possui Jesus hereticamente vestindo a indumentária de garçom e não de Redentor.


Um dos efeitos dessa sociedade dentro da igreja é que aqui funciona como restaurante de desejos. Fala-se de santificação, de Jesus, de obediência e disso tudo que está na bíblia e pregado há mais de 500 anos a partir da reforma protestante.


Só que nesses tempos de hipermodernidade há uma diferença na pregação. Tudo isso – cristo, santificação, obediência à Palavra, etc., virou um meio para se conseguir um fim: a realização do próprio desejo. Busca-se santidade para se conseguir realizar mais desejos, como fichas que se acumulam: quanto mais santo e mais obediente mais bênçãos se recebe.


Portanto, um dos desafios da igreja está em manter-se biblicamente embasada e teologicamente atualizada para esta época que nos lança desafios constantes ante a educação dos filhos e do discipulado cristão. Reverter essa situação de Cristo como intermediário entre a santidade e o desejo humano compulsivo (que não deixa de ser um pecado).


Deus deve reassumir o seu papel: O Eu Sou O Que Sou definido em essência e sem pragmatismo e nem relativismo algum em sua definição. Deus não é filosofia de vida. É Senhor e deve ser adorado pelo que É e não pelo que poderia dar se quisesse.

Marcelo Quirino
Psicólogo Clínico (UFRJ)
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