segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Eu, um Narcisista?

A história de Narciso é bastante conhecida. Na mitologia grega, Narciso era um belo rapaz, que havia rejeitado a ninfa Eco, que por sua vez desejava-o ardentemente. Assim sendo, ele recebeu como punição uma espécie de maldição, passando a adorar incontrolavelmente sua própria imagem refletida na água. A angústia de Narciso diante da insatisfação promovida por essa bizarra paixão, conduziu-o ao desespero de se suicidar por afogamento.

Os termos “narcisismo” e “narcisista” são popularmente utilizados como se referindo a uma pessoa extremamente vaidosa, egoísta ou orgulhosa. Sua versão em círculos acadêmicos recebeu, é claro, devido aprofundamento. Narcisismo seria mais do que simples (pela complexidade que o termo envolve) vaidade humana. Na psicanálise freudiana, narcisismo indica uma tendência libidinosa pela qual o indivíduo lida com seu corpo da mesma forma como lidaria com um objeto sexual, “contemplando-o, afagando-o e acariciando-o até obter satisfação completa através dessas atividades”(1).

Bem, a psicanálise oferece diferentes representações para o narcisismo, presente nas diversas condições da vida de uma pessoa, o que não me compete aqui nomear ou analisar(2). Meu interesse é trazer um breve olhar sobre alguns possíveis reflexos de um tipo específico de narcisismo na espiritualidade cristã, a partir de um foco analítico em particular de matiz mais filosófica, que, por conseguinte, permitirá uma releitura teológica.

Narciso e o duplo do real

O assunto despertou minha atenção casualmente, em função da leitura feita por um filósofo francês, Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo, no qual desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária” que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa. A realidade não se dá a conhecer plenamente, não é inteligível.

Ao abordar o mito narcísico, Rosset afirma que a fragilidade ontológica de Narciso, que o levou à aniquilação de si, não foi a apreciação, o amor ou a grande aceitação pelo seu “eu real”, mas sua fixação em uma espécie de “duplo psicológico”, ilusório. Ou seja, essa interpretação nos conduz a pensar que aquilo que Narciso contempla embevecido, na verdade, seria a sua não-realidade, uma representação (desejável) de si mesmo, da qual ele necessita para continuar existindo, para além do desespero de não ser.

A mortalidade – preceito de que a existência tem um fim previsto, embora o momento do fim seja imprevisível – já afirmara Paul Tillich em A coragem de ser, é uma das grandes fontes geradoras de aflição e ansiedade no ser humano, à medida que ela representa uma ameaça constante ao ser. Contudo, como assevera o próprio Tillich (p. 42), “se a ansiedade fosse só ansiedade do destino e da morte, a morte voluntária seria o caminho para sair do desespero”, de tal maneira que a coragem requerida não seria a de “ser”, mas a de “não ser”.

Nesse sentido, as perspectivas de Tillich e Rosset se aproximam na medida em que este último defende que a angústia do sujeito, mais do que a própria morte, provém de sua não-realidade, sua não-existência. Em outras palavras, a pessoa narcísica sofre por perceber que o ideal de si não corresponde à realidade, que é cruel. Sendo esta cruel, ele precisa de outra “dose cavalar” de seu duplo, sua representação, que oferece, segundo Rosset, não a si mesmo, “mas seu outro, seu inverso, sua projeção segundo tal eixo ou tal plano” (p. 91).

A “ilusão voluntária” consiste no efeito psicológico tranqüilizador produzido pela representação no espelho; no encontro com meu outro, penso estar em contato comigo mesmo.

Essa terminologia de Rosset parece ter uma aproximação com o conceito de “estádio do espelho”, de Lacan, que os autores Daniel L. G. Miranda, Anna C. Vieira Paulo e Simone C. da Cruz expressam como sendo o “momento estrutural do ser humano”, que acontece entre os seis e dezoito primeiros meses da criança, quando ela se reconhece pelo seu duplo, a imagem de outro-eu refletida no espelho. Segundo os autores (p. 157), “a identificação com essa imagem vai lhe proporcionar uma ilusão de completude, antagônica à vivência de despedaçamento, referendada pelo seu momento pulsional auto-erótico”.

O âmago da ferida aberta em Narciso

E a ferida narcísica se abre outra vez quando a ilusão é desmascarada, como explicita Clément Rosset: “Pensava-se tratar com o original, mas na realidade só se havia visto seu duplo enganador e tranqüilizador” (p. 92). Dessarte, “a agressividade se fará presente neste momento, intrínseca à relação especular, onde o sujeito ama aquilo com que se identifica e quer ser e, ao mesmo tempo, por ser outro, odeia” (Miranda, Vieira Paulo & Cruz, p. 158).

Isso me faz refletir acerca de quantas vezes (impossível contar ou trazer à consciência) não precisei nutrir uma imagem idealizada e, como tal, ilusória de mim mesmo a fim de poder continuar apreciando minha vida. A razão para existir como pessoa às vezes pode provir das fontes mais enganadoras e despersonalizadoras possíveis, sem que mesmo nos demos conta. Obscuridade própria do que é subjetivo.

A vida como ela é, bem como o “eu” tal como ele é, pode ser uma pílula amarga de se engolir. Daí nosso doentio desespero e azedo gosto pela representação – e o que mais poderíamos esperar de nosso olhar para a realidade?

Assim, de acordo com Rosset ( p. 108), “o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem”.

E quando a representação deixa de ser suficiente para apaziguar o eu, Narciso? Quando o angustiado se vê essencialmente duvidando de si mesmo, ele precisa então (ou conjuntamente com a obstinação por sua própria imagem) de outro testemunho, o testemunho de outro, exterior a si. E este é “o miserável segredo de Narciso: uma atenção exagerada ao outro” (Rosset, p. 108). A baixa estima – caracterizada pela psicanálise como efeito paradoxal do narcisismo – em relação a seu eu (o original), pede, portanto, o outro, tranqüilizador: o testemunho (ou idolatria) de uma pessoa, que reforce o real, que ressalte o duplo.

Eis-me então, Narciso que sou, diante da mais viciosa das dependências: a da sempiterna aprovação e confirmação, seja pela auto-imagem de si mesmo ou pelo testemunho externo, de meu duplo, daquele que eu gostaria de ser. Negação de mim, incurável ingratidão. E, como bem observa Rosset (p. 93), “esta recusa do único, aliás, é apenas uma das formas gerais de recusa da vida”.

Na análise de Paul Tillich dessa negação e desespero, é compreensível, segundo ele, “que toda vida humana possa ser interpretada como uma tentativa contínua de evitar o desespero. E essa tentativa é, na maior parte, bem sucedida” (p. 43). E o que é a religião, muitas vezes, senão o “santo” remédio, ou essa quase sempre bem-sucedida tentativa de pelo menos aliviar o desespero humano mais óbvio e de manter as pessoas longe da realidade de quem elas são e de quem o mundo é?

A espiritualidade, para além do narcisismo

O que essa incursão (bem ou mal-sucedida) no papo de filósofos e psicanalistas tem a ver propriamente com a espiritualidade cristã no mundo atual? Para vias de uma brevíssima e superficial avaliação: tudo, eu diria. Não apenas pelo fato de o mundo (pessoas) atual continuar sendo, à sua maneira, óbvia e previsivelmente narcísico, mas pelo tipo de ser humano que ele engendra, separado muitas vezes de sua própria humanidade e distinção pessoal. E se isso realmente representa uma negação da vida, como me faz acreditar Rosset, também representa uma negação de Deus, visto que o que é anti-vida aponta para o que é anti-Deus.

E a igreja, que deve ser instrumento de fomentação de uma espiritualidade cristã saudável – ainda que muitos entendam esse “saudável” como algo relativo – também acaba militando contra a vida todas as vezes que instiga, pela via do discipulado, da pregação e outros meios, tipos ou modelos ideais de santidade e espiritualidade baseados em exemplos não somente antiquados (para a época), mas, o que é pior, anti-humanos, que por sua vez nada têm a ver com o evangelho, cuja pregação e vivência implicam em transformação do ser, sim, só que pela via da aceitação – “vinde como estás” – e não do jugo ou da culpa.

Maior prova de aceitação divina de tudo o que somos não há senão aquela expressa pelo “está consumado” de Jesus na cruz. A santidade e espiritualidade que não provenham da assunção da cruz como vocação e aceitação da graça do “está consumado” como princípio de existência, pode estar mais perto do inferno que do céu, ao contrário do que muitas vezes se pretende.

Não estou defendendo o encobrimento de pecados, como se toda culpa fosse negativa. Porque, como adverte Paul Tillich, “ser aceito não significa que a culpa está negada”. Há, como se sabe, um nível de culpa sadio, que deve produzir arrependimento na pessoa diante de Deus. Mas há também uma falsa culpa, doentia, produzida por um senso equivocado do lugar do ser humano na economia da graça e do amor de Deus. Assim, nosso papel como igreja não passa pela condenação, muito menos pelo encobrimento; é o de ajudar uns aos outros a avançar em estatura na fé, transformando “os sentimentos de culpa deslocados, neuróticos, em genuínos, que são, por assim dizer, colocados em seu lugar certo” (Tillich, p. 129).

O remédio para a doença – ainda que amargo e nem sempre tão eficaz e instantâneo como um tranqüilizante narcísico – pode ser expresso pelo que Rosset chama de “aceitação jubilosa de si”, ou o que Tillich chama de “coragem de ser a despeito de não ser”, e que o apóstolo Paulo denominou “limitar seu orgulho à esfera que Deus lhe confiou” (2Co 10.13) e “viver de acordo com o que já se alcançou” (Fp 3.15-16).

Tomando de empréstimo todos esses termos, eu diria que a aceitação jubilosa de si mesmo passa por uma profunda assimilação – tão profunda que penetre não somente o intelecto, mas o âmago, as “entranhas”, como no conceito hebraico de “coração” (leb) – das tenras palavras de aceitação do Pai: “A minha graça te basta” (2Co 12.9). Parafraseando Tillich, trata-se da coragem de “aceitar a aceitação”, isto é, aceitar a nós mesmos como somos, porque assim fomos previamente aceitos pelo Pai, sem nenhum requisito mínimo.

Em outras palavras, é correr na contramão de Narciso, que reside em cada um de nós por força da natureza, e aceitar quem somos, a despeito daquilo que desejávamos ser, desencadeando-se das falsas representações e dos falsos “eus”, que nos afastam de uma relação sadia conosco mesmos e, por conseguinte, com Deus e com o próximo.
Não poderemos andar de acordo com Deus se não andarmos “de acordo com o que alcançamos”, como defendeu Paulo. Termino com uma frase de Rob Bell: “Você não poderá estar conectado com Deus enquanto não estiver em paz com quem você é, da maneira como foi feito e a vida que lhe foi dada” (p. 47).

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(1) Miranda, Vieira Paulo & Cruz, 2009, p. 150.
(2) Para fins de uma familiarização maior com o conceito em si e outras possibilidades de aplicação à espiritualidade cristã, sugiro a leitura do excelente artigo de Daniel Leite Guanaes de Miranda, Anna Christina Vieira Paulo e Simone Cabral da Cruz: “O narcisismo, a construção de laços sociais no século XXI e sua influência na espiritualidade evangélica contemporânea”, publicado na Revista Práxis Evangélica, número 15. Londrina: FTSA, 2009, p. 149-168.

Referências Bibliográficas
BELL, Rob. Sex God. Exploring the endless connections between sexuality and spirituality. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2007.
MIRANDA, Daniel L. G. de, CRUZ, Simone C. da & VIEIRA PAULO, Anna C. “O narcisismo, a construção de laços sociais no século XXI e sua influência na espiritualidade evangélica contemporânea”. In: Revista Práxis Evangélica, número 15. Londrina: FTSA, 2009, p. 149-168.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008.
TILLICH, Paul. A coragem de ser. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.



Jonathan Menezes Jonathan Menezes Jonathan é professor de história e teologia na Faculdade Teológica Sul Americana e no ISBL – Centro Educacional Evangélico, em Londrina. É mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina e um dos pastores da Igreja Presbiteriana do Caminho.

Fonte: http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=48